Com elenco negro, Cia de Teatro da UFBA estreia Pele Negra, Máscaras Brancas
No próximo dia 18 de março, segunda-feira, a Cia de Teatro da Universidade Federal da Bahia vai estrear Pele Negra, Máscaras Brancas – primeiro espetáculo da Cia encenado por uma diretora negra, Onisajé (Fernanda Júlia). Depois da estreia, o espetáculo segue em cartaz de 23 de março a 14 de abril, de sexta à domingo, às 19h, no Teatro Martim Gonçalves. A entrada é gratuita.
A montagem abre a programação do 3° Fórum Negro de Artes e Cultura (FNAC), que ocorre de 18 a 22 de março em vários pontos da UFBA e traz como temática Xirê dos saberes: (Re) Conhecer, Existir, uma relação à festa pública do Candomblé, onde os Orixás são homenageados ao mesmo tempo. O fórum explorará a multiplicidade de saberes em diversas perspectivas, tanto nas artes, quanto na filosofia e outras linguagens.
A encenação, composta majoritariamente por negros e negras, traz na codireção Licko Turle, professor visitante da UNIRIO. O elenco é formado por dez atuantes que foram selecionados em audição: Iago Gonçalves, Igor Nascimento, Juliette Nascimento, Manu Moraes, Matheus Cardoso, Matheuzza Xavier, Rafaella Tuxá, Thallia Figueiredo, Victor Edvani e Wellington Lima.
A ficha técnica traz ainda Thiago Romero e Tina Melo na direção de arte, cenário, figurino, maquiagem; Luciano Salvador Bahia, na direção musical; Edileusa dos Santos, na coreografia e preparação corporal; Nando Zâmbia, no desenho de luz; Joana Boccanera, na preparação vocal; e produção de Luiz Antônio Sena Jr., da DAGENTE Produções.
Aldri Anuncianção, dramaturgo do espetáculo, explica que Pele Negra, Máscaras Brancas se baseia em tese homônima de Frantz Fanon e é uma obra de ficção que se vale de quase todas teorias e ainda traz personagens analisadas pelo psiquiatra e filósofo. A obra fanônica se constitui numa leitura obrigatória para aqueles que discutem, estudam e lutam contra o racismo.
Enredo
O dramaturgo declara que sua obra é distópica ao perpassar três períodos – 1950, 2019 e 2888 – para falar sobre como o processo de colonização construiu sofrimentos psicológicos em corpos negros. Ao trazer essas três instâncias de tempo, que dialogam entre si, Pele Negra, Máscaras Brancas “tem um pessimismo ao pensar e repensar feridas provocadas pela colonialidade”.
“É irônico também ao abordar um presente ultrapassado que traz feridas que persistem – racismo, rejeição as diversidades e outras subjetividades que podem se perpetuar caso não as enfrente”, comenta Anunciação.
“Os Condenados da Terra” é outra obra de Frantz Fanon utilizada como referência na dramaturgia. Pele Negra, Máscaras Brancas apresenta a ferida da subjetividade negra. Os Condenados da Terra apresenta uma proposta de ação sobre essa subjetividade falhada ou estragada do negro pela colonialidade.
Para a construção do tempo da narrativa, o dramaturgo usa o conceito do Tempo Espiralar, da Leda Maria Martins. Um estudo que avalia a temporalidade na filosofia africana. “O tempo ocidental é plasmado nas palavras e tem uma articulação de início-meio-fim. Já no tempo africano o passado e o futuro dialogam resultando num presente”, realça.
Trazer o tempo-espaço de 2888 não foi uma escolha à toa, tem uma relação com o ano de 1888, ano em que ocorre a abolição brasileira, muito embora a peça não traga o Brasil como espaço dramatúrgico. “A dramaturgia traz um diálogo da contemporaneidade com o futuro, por isso, conceituo esta peça como uma obra distópica, no sentido de imaginar um futuro perverso, intensificado nos seus conflitos”.
A montagem traz o próprio Frantz Fanon como personagem no ano de 2019 defendendo novamente sua tese de doutorado, rejeitada pela banca examinadora no ano de 1950 – Pele Negra, Máscaras Brancas, obra que atualmente é referência mundial para discussão sobre o racismo. Dois artistas interpretam esta personagem, Victor Edvani – ator preto e cisgênero – e Matheuzza Xavier – atriz, transgênera e preta.
Para Victor Edvani, Fanon foi muito ousado ao publicar a tese Pele Negra, Máscaras Brancas, principalmente, por levantar a discussão num espaço totalmente branco. “As ideias dele foram publicadas há mais de 60 anos e continuam atuais. Mesmo deslocado geograficamente da gente consegue contextualizar nossa realidade e nos faz a enxergar melhor. Ele consegue tocar questões sensíveis”, reforça Edvani.
Matheuzza Xavier explica que “Fanon é o fio condutor das discussões mais profundas do espetáculo com foco num diálogo quase íntimo com a plateia. Da exposição de dores até as possíveis soluções para os problemas mentais e subjetivos do povo preto no Brasil. Fanon é uma das faíscas responsáveis por acender a chama da peça”.
A escolha proposital de Onisajé de colocar em cena uma mulher trans tem por objetivo gerar problematizações essenciais de onde e como esses corpos TRANS podem estar em determinados lugares. “O teatro é um espaço ainda sem muitas investigações e inserções desses corpos, limitando-se ao uso de atores cis para interpretar mulheres trans e/ou travestis de modo bem caricato”, crítica Matheuzza.
Além do próprio Fanon, a obra traz uma família formada por seis personagens-tese que vivem em 2888. Nesse tempo-espaço, essas personagens desenvolvem as perspectivas ocidentalizadas de futuro para o negro e estão enclausuradas em uma casa devido a personagem Taiwo ter ultrapassado os limites impostos pelo “Regime Único Mundial”.
Assim como Taiwo outras personagens da sua família já tinham sido infectadas em outros momentos pela “náusea do desejo de saber-ser” e invadiram a velha biblioteca que possui informações a respeito do processo africano pré-colonial. Manter esses livros/informações distante do povo negro, que foi colonizado e vem tendo sua memória escondida e apagada, é uma forma de controle sob os seus corpos.
Cores e vozes
Os corpos dos atores, que passaram por todo um processo de pesquisa – acadêmica, corporal e voz, são por si discursos e lugares de fala. Percebendo esta potência, o diretor musical Luciano Salvador Bahia definiu em conjunto com Onisajé colocá-los constantemente como fontes sonoras, transformando-as em coro.
“O texto não propõe, mas a montagem subverte e joga o coro em cena o tempo todo. Muitas vezes, esse coro ganha um tom ritualístico. Construímos ainda uma trilha com cara de ‘ficção científica’, em que misturamos atmosferas eletrônicas-futuristas com percussão afro-brasileira”, reforça Bahia, que contou com a preparação vocal de Joana Boccanera, que trabalhou os corpos dos atores para uma boa projeção, dicção e canto.
Nesse brincar de elementos futuristas para falar sobre a tomada de consciência da negritude a partir do passado, a visualidade – cenário, figurino e maquiagem – criada por Thiago Romero e Tina Melo reforça a discussão trazida na peça, com desenhos que misturam conceitos de afrofuturismo e alta-costura.
“A visualidade vem para reforçar a discussão da consciência de ser negro. Queremos falar como o indivíduo está imbricado nessa relação colonizada, de querer tornar-se branco, o que acaba apagando a memória ancestral”, explica Romero.
Romero descreve ainda que o figurino é formado com peças que se desdobram e mudam de cor, num diálogo com a luz criada por Nando Zâmbia. “A alta costura é uma brincadeira da moda burguesa que pode se transformar em outras coisas, modelos únicos focados para uma elite e que depois a gente descortina isso”, explica.
Corpos negros
Pele Negra, Máscaras Brancas traz uma equipe formado por artistas pretos e pretas, o que para a encenadora Onisajé é muito importante e significativo por uma questão da ampliação de narrativas. Esta conquista é uma reivindicação dos estudantes negros da graduação, da mobilização de artistas pretos engajados dentro da ETUFBA e a realização do FNAC, que contribuiu para que esse momento chegasse.
“A Escola de Teatro da UFBA é pioneira ao trazer isso para a cena, por diversificar e ampliar o olhar para a diversidade cultural do povo brasileiro. Principalmente, por trazer Frantz Fanon, autor importantíssimo para a consciência do racismo como prisão e fator de adoecimento, de impedimento do indivíduo negro(a) de ascender nos espaços”, exclama Onisajé, ao acrescentar que esta é segunda obra com elenco negro, sendo Gusmão – O Anjo Negro e sua Legião o primeiro espetáculo com essa temática, com dramaturgia e direção de Tom Conceição.
O diretor da ETUFBA, Luiz Cláudio Cajaiba Soares, descreve que, mesmo tendo uma temporada breve, Gusmão mobilizou de modo muito impressionante o interesse da comunidade de negros e negras da cidade. “Imprimiu-se como a primeira iniciativa desta natureza na Cia de Teatro, em sua existência de 35 anos. Pele Negra, Máscaras Brancas mostra que as presenças destas narrativas pretas, entre as produções da Cia, estão deixando de serem episódicas, para tornarem-se periódicas”, complementa.
A encenadora realça que, “nós pretos e pretas, a partir da nossa visão de mundo, experiência, cosmovisão e da nossa herança possamos evidenciar nossas contribuições no processo formativo de nosso país. O teatro é um espaço midiático, de criação, de plano simbólico, de referências e reconhecimento. Ver-se e ser visto é muito importante”.
Onisajé finaliza que, como encenadora, estar dirigindo esse espetáculo é um espaço importante de afirmação, de poderar e empoderar o povo preto. “A fala de uma encenadora mulher, negra, lésbica, do interior do estado, de periferia, que fez parte e faz dessa universidade – graduação, mestrado e agora doutorado – afirma e comprova a necessidade de colocar as nossas questões em todos os espaços”, conclui.
FNAC
Pele Negra, Máscaras Brancas é uma conquista da segunda edição do Fórum Negro de Artes e Cultura – FNAC, que caminha para a terceira edição em 2019, sob a coordenação coletiva dos professores da ETUFBA, Alexandra Dumas, Licko Turle e Stênio Soares. A realização é da Escola de Teatro e da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA.
Serviço
O quê: Pele Negra, Máscaras Brancas
Quando: 18, 23, 24, 29, 30 e 31 de março; 05, 06, 07, 12, 13 e 14 de abril, às 19h
Onde: Teatro Martim Gonçalves
Entrada: Gratuita
Ficha técnica:
Direção: Onisajé (Fernanda Júlia)
Texto: Aldri Anunciação
Elenco: Iago Gonçalves, Igor Nascimento, Juliette Nascimento, Manu Moraes, Matheus Cardoso, Matheuzza, Rafaella Tuxá, Thallia Figueiredo, Victor Edvani, Wellington Lima
Co-direção: Licko Turle
Assistência de direção: Fabíola Nansurê
Orientação de pesquisa: Alexandra Dumas e Licko Turle
Colaboração em Pesquisa: Cássia Maciel, Edson César e Lucas Silva
Estudantes-pesquisadores: Camila Loyasican, Juliana Bispo, Juliana Luz, Juliana Roriz
Trilha sonora: Luciano Salvador Bahia
Preparação Vocal: Joana Boccanera
Coreografia e Preparação corporal: Edileusa Santos
Cenografia, Figurino e Maquiagem: Thiago Romero e Tina Melo
Desenho de luz: Nando Zâmbia
Produção: DA GENTE Produções
Direção de produção: Luiz Antônio Sena Jr
Produção executiva: Anderson Danttas e Bergson Nunes
Assistência de produção: Eric Lopes
Assessoria de Imprensa: Theatre Comunicação
Design Gráfico: Diego Moreno
Registro Fotográfico: Andréa Magnoni
Realização: Escola de Teatro – PROEXT – UFBA