Professores publicam textos sobre Carnaval
Os professores Paulo Miguez e Leandro Colling, ambos do IHAC, publicaram três artigos, nas últimas semanas, sobre o Carnaval de Salvador. Os textos foram publicadosno jornal A Tarde.
Miguez criticou a Prefeitura por não ter homenageado “à altura” os 60 anos do trio elétrico e depois escreveu sobre um micro-trio que circulou no Rio Vermelho. Entre as inventoras está uma aluna do IHAC, Silvana Rezende.
Já Colling escreveu sobre os ensaios pré-carnavalescos. Leia abaixo a íntegra dos textos
Momo, alcaide e Ministério Público – dia 17 de fevereiro
Paulo Miguez (professor da UFBA)
Em qualquer lugar do mundo, as comemorações de um evento como os 60 anos do Trio Elétrico mereceriam um tratamento à altura da contribuição que a genial criação de Dodô e Osmar produziu para cultura baiana. Menos aqui, na cidade que viu o Trio nascer. A rigor, contudo, não há nada de estranho no fato de não termos tido uma programação que, ao longo do ano e durante a folia, celebrasse de múltiplas formas o aniversário do Trio Elétrico. Claro, como poderia ser diferente se a Prefeitura de Salvador, a quem cabe a obrigação de cuidar da festa, insiste em desconhecer que o Carnaval é uma expressão do patrimônio cultural e prefere continuar a tratá-lo apenas como um grande negócio?
O que causa estranheza mesmo é que o Ministério Público, instituição sempre atenta, por exemplo, às agressões ao patrimônio ambiental, não tenha se dado conta que, ao agir irresponsavelmente em relação ao Carnaval, o Governo Municipal descumpre descaradamente o que estabelece a Constituição Federal quanto às obrigações do poder público relativas ao patrimônio cultural. Não tenho dúvidas, por exemplo, que uma questão como a ordem dos desfiles nos circuitos da festa, que deveria ter como critério organizador a diversidade das manifestações carnavalescas e não o interesse dos grupos que dominam o negócio da festa, possa ser objeto de uma ação de improbidade administrativa.
Nossa sorte é que o Carnaval, historicamente, tem sabido superar modelos e modismos que pensam ser mais e maiores que ele. Bons exemplos da rebeldia carnavalesca são, na Bahia, o próprio surgimento do Trio Elétrico, que sessenta anos atrás destroçou o modelo de Carnaval europeizado que então dominava a folia, ou a emergência dos Blocos Afro, que na metade dos anos 1970 renovaram a festa e a cultura baiana no seu conjunto, e no Rio de Janeiro, o ressurgimento, nos últimos anos, dos blocos de rua que, às centenas, se oferecem como alternativa ao enclausuramento midiático das Escolas de Samba. Mas sorte grande mesmo é que Momo é eterno e alcaides, felizmente, são passageiros.
Reinvenções no reino de Momo – dia 20 de fevereiro
PAULO MIGUEZ – Professor da Ufba
O Carnaval se reinventa permanentemente.
Mas por partes.
Nada de mudanças gerais, bruscas.
Momo é rei, é dado a invenções, mas não é mágico.
No Carnaval, a coisa vai indo, vai indo e às tantas a folia já é outra. Foi assim com o trio elétrico, foi assim também com os blocos afro.
Foi assim, também, com os blocos de trio, que conseguiram a proeza de reinventar o Carnaval, com seus negócios e suas estrelas, e desinventar o trio elétrico, com suas cordas.
Como se vê, no reino de Momo há invenções e desinvenções.
Há até mesmo falsas invenções, como o Estatuto do Carnaval, editado este ano pela Prefeitura de Salvador, que faz de conta que inventa para nada inventar – não seria obrigação do Estatuto reinventar, po exemplo, a ordem dos desfiles, que sabidamente atende apenas à esperta invenção dos que dominam o mercado da festa? Ousadia Pois, neste Carnaval de 2010, dei conta de uma invenção genial.
Uma invenção daquelas que reinventam, verdadeiramente, a folia, uma ousadia só possível graças à generosidade de Momo.
Estou me referindo ao carrinhodecafétrioeletrizado, que pelo segundo ano consecutivo tem arrastado, no fim da tarde do sábado de Carnaval, uma (ainda) pequena multidão por algumas ruas do bairro do Rio Vermelho.
É isso mesmo: um carrinho de café, daqueles que aprendemos a admirar no centro antigo da cidade, equipado com um iPod, um amplificador e uma bateria de carro, tocando de tudo um muito, como manda a tradição do trio elétrico, com direito a confetes poéticos e intervenções visuais.
Rave Uma verdadeira rave-momescomultimidia em um (novo) curto-circuito carnavalesco. Os inventores? Um trio elétrico: Ana Dumas, Karina Rabinovitz e Silvana Rezende. Evoé, meninas.
O Carnaval segue em frente e atrás, só não vai quem já morreu.
Os ensaios ensinam a deixar-se levar e a apropriar-se do Carnaval de Salvador – dia 6 de fevereiro
LEANDRO COLLING – Pesquisador e professor da Ufba
Salvador encerra mais uma maratona de ensaios e entra no Carnaval, festa maior que já foi bem analisada por dezenas de pesquisadores – enquanto os ensaios têm recebido menor atenção. E o que eles representam para a cidade? Os adeptos do determinismo econômico e do saudosismo se apressariam em dizer que os ensaios perderam a sua essência e viraram um grande negócio. Eu estaria de acordo com eles, não fosse meu grande problema com os ideais de pureza embutidos nas ideias de essência e originalidade.
Mas meu objetivo aqui é outro: refletir sobre a importância destes eventos para além dos aspectos econômicos e saudosistas de quem se lembra dos ensaios do Bloco do Jacu. Considero, assim como muitos outros, a época dos ensaios pré-carnavalescos um dos períodos mais interessantes da cidade, mais, inclusive, do que o próprio Carnaval.
A lógica é outra
Os ensaios realizados atualmente em Salvador redefiniram a própria lógica dos realizados em outros lugares. Eles tornaram o verão da cidade diferente de todas as demais capitais brasileiras, o que contribui com o turismo, em função da possibilidade do turista querer permanecer mais tempo na cidade.
Ocorre uma sociabilidade importante nos espaços dos ensaios e é através dela que as pessoas aprendem a ser foliões.
São essas três afirmações, em especial a última, que eu gostaria de aprofundar.
A primeira: nas escolas de samba do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, os ensaios servem para que os integrantes da bateria “aqueçam os tamborins” e, também, para que os membros da escola saibam cantar o samba-enredo do ano. Por isso, na totalidade ou em boa parte do tempo do ensaio, canta-se a mesma música. Depois disso, a letra parece grudar no cérebro da pessoa.
As escolas fazem isso porque os jurados avaliam se todos os integrantes do desfile cantam o samba-enredo na avenida. Determinadas escolas do Rio, onde a competitividade é grande e uma agremiação pode ganhar ou perder o primeiro lugar por meio ponto, retiram os eventuais integrantes que não sabem a letra da música tema.
No Recife, existem as chamadas prévias do Carnaval, realizadas pelos blocos e pelos grupos de maracatu. O excelente percussionista Naná Vasconcelos se desdobra em vários para participar de dezenas delas, que culminam depois no famoso encontro de maracatus, no Marco Zero. Esses ensaios, portanto, também são diferentes dos realizados aqui, pois vislumbram, em boa medida, treinar para a performance em um desfile.
Saudade e excitação
Para muitos, sequer poderíamos chamar de ensaios os acontecimentos pré-carnavalescos de Salvador. “É um show de uma banda, como qualquer outro”, dizem alguns. Não tendo a concordar.
Aqui, baianos e turistas ensaiam, sim – e não apenas para saber a letra da música e a coreografia do ano. Em muitos ensaios, essas questões não têm a menor importância. As pessoas ensaiam a festa que farão a partir da quinta-feira de Carnaval. E também matam a saudade da folia anterior.
Quem ama Carnaval sabe que já nos primeiros ensaios sente-se que finalmente chegou o período de festa. É quando a cidade vive uma grande excitação para, depois da Quarta-feira de Cinzas, entrar em uma espécie de depressão, que só começa a dissipar com o São João, mas que vai embora, definitivamente, apenas a partir de novembro/dezembro.
Mais do que aprender as músicas, nos ensaios de Salvador as pessoas que nunca participaram do Carnaval soteropolitano aprendem a viver e a sobreviver nos seis dias de festa.
“Sóberano”
O que quero dizer é que há um modo de viver o Carnaval de Salvador que os ensaios ensaiam.
Há um modo de dançar que vai além das coreografias dos hits. Há um modo de se relacionar com o outro, de permitir uma aproximação, o toque, de literalmente se deixar levar pela multidão, de compreender, sentir e se apropriar do espírito da festa. Quem não entende ou não sabe disso, precisa, sim, ensaiar (e quem já sabe, não custa repassar).
Um corpo duro e estático, por exemplo, vai sofrer no Carnaval.
É preciso saber deixar a onda te levar. Quem tem fobia de multidão, então, melhor ficar longe, ou ensaiar bastante, especialmente se quiser, como eu, sair no melhor bloco de Salvador, o “Sóberano”. Traduzo, do baianês e para sugerir mais uma palavra no dicionário de Nivaldo Lariú que, assim como eu, não nasceu na Bahia: “só berano as cordas”. É a famosa pipoca.
LEANDRO COLLING É PROFESSOR DO INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS E DO PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE DA UFBA